quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Passos de quem jamais conseguiu chegar ao fim de sua jornada - (Conto)

Por: Cyntia Dias

E continuavam caminhando. Sem saber de onde vinha aquela força, já que não comiam há dias. Para matar a sede dividiam a pouca água que ainda restava nos pequenos recipientes e rezavam uma Ave Maria baixinho.

No total eram seis pessoas na família. O pai era um homem de estatura mediana, esquálido, cabelos e barba por fazer. Não falava. Só mantinha os olhos fixos em algum lugar. Esperava encontrar além do horizonte ao menos uma poça de água barrenta, que tivesse sobrevivido àquela seca toda, para aliviar a sede de seus quatro filhos, de sua magra esposa e a dele próprio.

Caminhavam há bastante tempo. Desde que a seca se instalou nos grotões nordestinos o velho homem percebeu que tinha que fugir dali. Tentar salvar sua família das garras implacáveis da miséria que se abatera sobre o lugar.

Um dia acordou pela manhã e sentou na velha cama improvisada com colchão a base de palha mesmo. Olhou a mulher ao seu lado. Ainda era bonita apesar dos anos e dos filhos. Olhou pela janela e teve um pressentimento ruim. Saiu da casa de sapê e foi alimentar as galinhas. Um pensamento não saia da cabeça do caboclo. A seca chegou. É hora de partir.

Arrumaram os poucos pertences e saíram em busca de outras terras. As crianças maiores iam à frente, duas meninas já crescidas. Um terceiro tentava acompanhar. Era mais novo. E a menina que ainda era de colo ia com a mãe. As idades não são precisas. Os pais os criaram assim meio sem se importar em lhes dar nome ou contar os seus anos. Não teriam mesmo condições para comemorarem os aniversários. Melhor esquecer e cuidar de alimentá-los, no futuro seriam mais braços fortes para trabalhar.

Depois de alguns dias caminhando o estoque de comida acabou. Eles começaram a comer raízes para enganar a fome. As crianças se mostravam mais fracas. A mulher estava muito magra. Não tinha mais leite para o bebê. Este definhava ainda mais a cada dia.

O tempo parecia querer castigar ainda mais a pobre família. Esfarrapados rastejavam pelas terras áridas de um nordeste sem fim. Os dias eram longos. Aos poucos começaram a encontrar mais dificuldades para conseguir água. Nas fazendas os poços secavam e as pessoas começavam a querer expulsá-los quando tentavam encher seus cantis para continuarem viajem.

Já fazia um bom tempo que não avistavam sinal de vida nos sertões. Estavam sem água. O bebê de colo havia falecido por falta de nutrientes e fora enterrado há poucas semanas. A mãe não se lembra de ter chorado. Ninguém lembra. Parece que rezaram mais um rosário e enterraram a pobre criatura em cova rasa. Estava apenas enrolado em um lençol velho. Também já não tinha utilidade, o lençol. O homem pensou que seria uma boca a menos para alimentar, enquanto via mais um pôr do sol sem esperanças de poder chegar a lugar nenhum.

Depois de uns dois dias conseguiram chegar a uma grande fazenda. Disseram que era de um senador muito rico. O homem pediu permissão para ficar com sua família uma noite e também pediu um pouco de comida.

No outro dia pela manhã, ele pôde encontrar com o senador. O senador perguntou se ele tinha filhos. O homem respondeu que tinha quatro, mas que só lhe restavam três. A seca o havia arrancado a filha menor.

O senador perguntou se tinha filhas. “Sim, duas meninas já bem grandinhas”. “Traga-as. Quero vê-las”. E o homem as levou.

O senador disse ter interesse na mais velha. Esta parecia ter uns doze anos. Estava suja, cabelos desgrenhados, roupas em farrapos, olhos sem vida. O homem assentiu. Apenas abaixou a cabeça. O senador disse para ele pegar quanta água quisesse e também comida para a viagem e ainda recebeu uma quantia em dinheiro. Isso daria para manter a mulher e os outros dois filhos que restaram por um tempo.

A despedida foi fria. Disseram que ela tinha que ficar. Esse era o acordo com o senador. A mãe a instruiu a ser boazinha com o velho que aparentava ter uns 60 anos. “Se fizer tudo o que ele te pedir você terá casa boa e comida. Não vai mais sofrer como nós. Se desobedecê-lo ele te caçará e te matará”. A menina só ouvia. Ela viu quando os pais partiram.

Naquele mesmo dia o senador ordenou as suas empregadas para darem banho e arrumarem roupas limpas para a menina. Esta foi bem alimentada e encaminhada para um quartinho nos fundo do casarão da fazenda.

A noite não tardou. O velho senador apareceu na porta da garota e perguntou se podia entrar. Ela pressentiu algo ruim. Encolheu-se na cama. Ele disse que não precisava ter medo. Deu algo para ela beber. Parecia cachaça, desceu queimando a garganta. Depois mais um gole e depois outro. Acordou pela manhã em meio a lençóis manchados de sangue. Todo o corpo doía. Relembrou algumas cenas da noite anterior.

Ao meio dia o velho político quis ver como estava a sua nova aquisição, pois tinha gostado muito do último negócio e até que tinha saído bem barato. Quando o homem entrou no quarto levou um susto. A menina estava com um lençol amarrado no pescoço. Seu corpo estava branco e sem vida. O homem lamentou, mas logo soube que uma outra família se encontrava na sua fazenda em busca de abrigo.

Dando meia volta o senador foi ver os novos visitantes. De cara viu uma menina que não deveria ter mais que nove anos. Pensou que estava na hora de voltar aos negócios e sentiu por sua última mercadoria ter durado tão pouco.

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